Crônica de Gelo e Frio


Era uma subida árdua, mais do que imaginava. Ele também não estava com um bom porte físico, afinal um contador poderia levar uma vida sedentária sem atrapalhar seu desempenho e o futebol de um dia por semana não o tornava um atleta. O que não o impediu de tentar subir a montanha carregando o equipamento para esquiar na melhor pista natural da região. Já tinha habilidade suficiente para descê-la o problema era subir a pé, na neve e carregando peso.
Havia uma cabana no topo, um refúgio, onde poderia tomar uma bebida quente e descansar antes de esquiar no dia seguinte. Havia zombado de seu amigo que teve preguiça de subir a montanha naquele frio que já fazia seus dentes tremerem. Agora subia sozinho com muita dificuldade, com neve até metade das coxas e revisava em sua mente como iria contar a história quando se reencontrassem: mentiria, diria que a subida trazia uma paisagem bonita, uma trilha agradável que o levou para a melhor esquiada de sua vida. Ele não tinha ideia de como seria a pista, mas todos disseram ser a melhor da região, pelo menos nisso ele acreditava.
Subia sozinho, nesse tempo todo viu um grupo de umas quatro pessoas subindo logo que chegou e dois homens o passaram nos primeiros minutos de trilha, se moviam bem mais rápido e em pouco tempo se perderam de vista. Já se passaram horas e não via mais ninguém, o cansaço estava perto de tomar conta do seu corpo, o equipamento e a roupa de frio pesavam e dificultavam o movimento. Precisou de muitas camadas de pano para suportar o clima, a vida toda foi acostumado ao Rio de Janeiro e seus 40 graus.
Continuava com toda a força que lhe restava, pensava que deveria estar perto depois de tanta subida. Havia se passado muito mais tempo do que o previsto, não havia levado em conta de que era mais lento do que as pessoas que estavam acostumadas a andar na neve.
O trajeto foi se tornando plano, se sentiu com sorte quando viu que havia um caminho com gelo logo em frente. Era um pequeno lago congelado, apesar de escorregadio decidiu passar por ele. Julgou que preferia deslizar com cuidado a continuar batalhando com a neve, estava em um ponto em que os músculos de suas coxas ardiam de dor com o esforço. Testou a borda, pisou, bateu forte e era como acertar uma pedra, seguiu com cuidado pelo gelo.
Logo ao passar pela metade do lago escorregou feio e bateu a cabeça com força no chão. Com a pancada o gelo cedeu e ele mergulhou na água congelante, afundou completamente desorientado antes de tentar se por de pé. O lago não era muito fundo, conseguia respirar ao ficar na ponta dos pés, mas tinha dificuldade para nadar. Sentia a mesma sensação de colocar a mão em um isopor com gelo e bebidas, mas no corpo inteiro, sentia uma dor aguda em todos os músculos e seu pescoço e queixo queimavam por estarem descobertos.
Desesperado, tentou se mover até a borda do buraco que se formou e subir novamente no gelo, não tinha força e se machucou ao bater na borda diversas vezes tentanto se jogar para fora da água. Não tinha mais fôlego, não conseguia boiar pois seus músculos estavam contraídos por culda do frio e do desespero, suas botas pesadas puxavam seus pés para baixo e ele não conseguia pensar claramente. Tinha muito medo, tanto de se afogar como de ter uma hipotermia, o famoso morrer de frio. Queria gritar mas não tinha fôlego, queria chorar mas seu rosto já estava ensopado e congelando. A única coisa que pode fazer foi aquietar-se, esticou a cabeça para fora d’água tentando recuperar o ar que perdeu, neste ponto já não sentia mais dores, só frio.
Em meio a pausa no frio constante sentiu algo a mais, seu corpo entrou em um estado de alerta e ele se sentiu mais vivo do que nunca. Era como se tivesse tomado uma dose cavalar de cafeína na época que não era tão acostumado ao café, ou se tomasse muitos energéticos em uma noite de balada. Com a súbita injeção de energia ele seguiu até a borda mais uma vez e teve forças suficientes para se colocar sobre o gelo se arrastando, engatinhou até uma distancia razoável do buraco e se deixou deitar no chão. Ainda ofegava e estranhamente se sentia bem, aquela sensação de estar naturalmente chapado ainda não havia passado e ele não conseguia descansar a mente enquanto se mantinha ali, deitado e olhando para o céu sem núvens daquele dia cada vez mais frio.

Comentários

  1. Uma tragédia de gelo e frio. Gostei da forma como um tom de empolgação e comicidade se transforma tragicamente num tom de desesperança, me pegou de surpresa. Saber se o esforço valeu a pena ou o protagonista acabou morrendo de frio deitado ao lado do lago fica a cargo do leitor, né? hahahahahahaha, eu não sobreviveria.

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  2. Eu li crente que ele ia morrer e fiquei em dúvida no final xD Bacana a caracterização do personagem!

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  3. Parabéns pela escrita tão descritiva! Realmente dá para sentir um desespero na cena onde ele luta para sair da água. Teremos continuação?

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